11.10.15

5

Grandes descrições passavam-lhe pela cabeça. Pareciam-lhe paisagens. Com o avançar da idade, ia ficando cada vez mais narrativa, apegada aos detalhes que aborrecem como se aborrecem as pessoas no jardim. No cimo de um largo em cidade do Norte, umas escadas chamaram-lhe a atenção. Subia por elas, ladeada por casas com vasos em flor e roupas velhas estendidas. Um idoso espanava um cigarro à varanda, com um olho cristalizado pelo vício do tempo vagaroso. Dentro das casas, ouviam-se os seus passos, degrau a degrau, embora ninguém os escutasse. Uma subjectividade pode atravessar paredes, pensou. Só a subjectividade atravessa paredes, corrigiu-se. Chegada ao cimo das escadas, havia que decidir o que fazer com o que via. Como se a natureza se tivesse lembrado de fugir às mãos dos homens no meio de uma cidade, estava ali intacta e dura, como uma parte de um corpo descuidado, abrigada em si mesma. Apenas que no canto superior da fraga, do terreno escabroso, despontara uma torre acastelada, jazida ali ao abandono, como tudo em volta. Voltou a descer as escadas: não sabia o que fazer com aquilo.

4

Pouco mais do que uma figurinha rúptil, dirigia-se por entre os olhos transeuntes até a um café onde se pudesse domingar com um pouco mais de paz de espírito. Ao longe, uma chamada telefónica fala-lhe de outros domingos no mundo, da subjectividade lancinante dos domingos que toca a todos como chuva miudinha. Leu o jornal, revigorada por uma ideia de ordem de um mundo onde correm notícias. Nos jornais parece não haver domingo. Assim passou o dia como outro qualquer.

26.9.15

3

Badalam os sinos, uma música passa, um cão late. As horas são feitas de desideratos passageiros como estes. Qualquer hora parada serve bem às palavras: basta abrir a janela e novamente abrir a outra janela que a primeira janela revelou. Essa já não dá directamente para a rua, mas atravessa-a para um lugar que se funde nela, interiormente. É escuro, por isso o movimento de atravessar ganha em ter ele próprio alguma luz. Os factos reais e interiores transmigram uns para os outros, num processo que vai da vida, passando pela morte, até que os dois se cruzem numa forma de vida que reage de um modo inédito e  que não é, por nós, já tangível, mas que, de certa maneira, se apresenta visível à mente. Badalam então pela segunda vez os sinos, a música volta a passar, um cão torna-se mais insistente e ruidoso. Porém, é tudo uma fantasmagoria que se cola à pele dos incidentes que lhe deram origem para desencadear um novo processo, verbal, que descreve, prescreve e proscreve ambos os factos. Nessa colisão de movimentos opostos, intelectual um e selectivo ou abdicatário, portanto emocionais, os outros, dá-se a criação.


30.8.15

2

Melhor do que por vezes viver é o langor de escolher não viver por uns tempos e deixarmo-nos amarrar aos relatos fabulosos que os livros nos dão. No Verão passado, bem educada fui nesse sentido por Albert Cossery, o Voltaire do Nilo, quando traguei em dois dias A Violência e o Escárnio (1964). Se nele se falava de como a tirania é desarmada pela política do escárnio, pelo desdém que o humor dardeja, longamente se debruçava também sobre a languidez e o aprendizado do torpor que levam a um exercício de reflexão profunda, tão profunda às vezes que resulta numa capacidade de abstracção de nós mesmos, alegremente recebida. Nada fazer, então: ser fumo pairando pelo ar dos dias, vagueando apenas os olhos por páginas riquíssimas com tamanhos legados, aos quais, por iniciativa própria e a sós, não poderíamos aceder e onde certas e determinadas obsessões, que já trazemos connosco e reconhecemos nesses livros, se podem espraiar livremente. 

Todos nós temos episódios da nossa vida de onde uma obsessão nasce. Nem sempre nos apercebemos da hora desse nascimento. Carregamo-las em inocência até qualquer coisa familiar a esse episódio as despertar, e que pode ser praticamente insignificante: mas haverá mesmo isso do insignificante? Em pequena, durante uma visita à serra de Laboreiro, deparamo-nos com um pastor levando as suas cabras pedregulhos afora, já que é terra de pastoreio. Uma das crias do rebanho tresmalha-se e aproxima-se de nós, dá um salto na minha direcção e agarro-a ao colo com uma felicidade súbita. Uma fotografia regista o momento. E é assim que nascem as obsessões, neste caso obsessão por um lugar, por uma paisagem, das mais ferozmente belas que me foi dada a ver. 

Tão feliz como quando o cabrito me saltou para os braços fiquei eu ontem quando me saltou para as mãos um livro que se passa precisamente em Castro Laboreiro, Serra Brava (1951), de Barros Ferreira, onde a paisagem assume um protagonismo quase antropomorfizado. A serra tem vida própria (e tem mesmo), influi nos acontecimentos e no carácter de tudo e de todos que a habitam, sendo todos feitos à sua semelhança, como o carácter de João da Ribeira (que viverá com uma desembaraçada pastora, Maria dos Tojos, uma história de amor que, por paixão, o obriga a confrontar-se cruelmente com os seus limites éticos num meio onde a honra vale mais do que a vida): «homem endurecido pela luta contra um meio hostil, mas acima de tudo leal. Tinha os tojos da serra na alma, mas os espinhos só eram agressivos para os que tentavam pisá-lo. Sentia a dureza da urze no coração, mas apenas para resistir à estiagem brutal da desgraça. Cópia humana e fiel da rudeza da terra em que nascera, só conhecia as transições bruscas, como a das nevadas letárgicas das longas invernias para a inclemência das estiagens dos verões caniculares, que tudo secavam. Em tais almas a ternura é um acidente de curta duração. Mas da rudeza à crueldade havia um grande passo». 

E assim me perco nessa música de chocalhos e plantas ao vento, nessa paisagem violenta, uma grande necrópole de rochedos e penhascos, disputando o tamanho do céu, misturando as páginas do livro às memórias dos vários anos em que visitei essa serra e lhe subia às árvores à gargalhada. Talvez nunca tenhamos saído daí, dessa posição que não se sabe privilegiada: quando somos tão naturais e simples é quando tudo é alcançável sem que para isso se faça nada. Ser como a pedra é. Ser e basta.

27.8.15

1

Então é assim que começam os dias que não amanhecem: uma heresia contra o tempo ou uma heresia do tempo contra nós, sempre o mais provável. No cimo dos telhados partidos, o sol especula os seus próprios raios com um espanto renovado e sombrio, como alguém que olhasse para as suas mãos e os seus braços pela primeira vez e nada neles encontrasse mais de si. Também os olhos têm agora as mesmas regiões alagadiças avistadas nos mais interditos espaços do corpo. Em exultação e glória, entre a miséria e a festa da vida, também esses lagos desejam apenas adormecer e engolir todo o barco que nele queira ainda atravessar-se. Os fios de cabelo parecem crescer mais rápido para poderem dar a volta à nuca ou simplesmente atingirem a mortificação do chão e esconderem, por fim, o rosto, abençoando-o com a escuridão. Como a mulher japonesa, os dias passam a ser o seu abrigo dos espíritos, das árvores infindas, das histórias dos outros. Nada mais a tenta a não ser respirar e viver, preparar as parcas refeições, ler junto a uma lâmpada ardente e adormecer. Observa os seus olhos pelo canto da faca e volta a guardá-la num ápice. Ver não adianta. Os seus olhos ficaram para trás, embora o vento os queira empurrar, como ao anjo. Mas nem o vento tem essa força. Despe-se de palavras e esse gesto gera uma comoção interior que abala o estuque e as janelas. Nunca nada é indiferente ao silêncio, a um corpo que se prontifica ao silêncio, a uma manhã que não amanhece. Nem triste chega a ser. A tristeza é do porte de uma ferida sarável; já o silêncio é do tamanho das montanhas onde só os nossos espíritos chegaram a pousar. É a tal glória, entre a miséria e a festa, um manto enfeitando-nos de uma nudez nova, brilhando sob um sol mais sombrio. É o que está por detrás das palavras de que ainda precisamos para o anunciar.